A ALEGRIA E O SOFRIMENTO

Paradoxos da alegria
São Josemaria Escrivá costumava dizer que «a alegria tem as raízes em forma de cruz» (Forja, n. 28); e na primeira página do seu calendário litúrgico, anotava muitas vezes, como lema do ano, estas palavras: In laetitia, nulla dies sine cruce («com alegria, nenhum dia sem cruz»).
Parece um paradoxo difícil de entender, pois a cruz está associada aos dois “esses” que quase todos veem como os grandes inimigos da alegria: o sofrimento e o sacrifício.
Também são paradoxais as declarações de amor à Cruz, que a Igreja faz na liturgia da Semana Santa: «Salve, ó Cruz, única esperança! — Ave, crux, spes unica» (hino das Vésperas da Semana Santa). E na Sexta-feira da Paixão canta: «Adoramos, Senhor, vosso madeiro… Por essa cruz, que hoje veneramos, veio a alegria para o mundo inteiro».
A Igreja contempla como olhos extasiados o amor inefável de Jesus, que dá a vida por nós – por você e por mim –, no máximo ato de amor que a história conhece; por isso, a Cruz foi, e será sempre, a suprema fonte de irradiação da alegria.
Veja o que nos dizem os Apóstolos:
• São João: Nisto sabemos o que é o amor: Jesus deu a vida por nós… (1 Jo 3, 16)
• São Paulo: Estou crucificado com Cristo…, e a vida que agora vivo na carne, eu a vivo na fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim (Gl 2, 19-20).
Jesus na Cruz, com as mãos estendidas, é o “abraço amoroso de Deus”, que envolve, protege, salva e move o coração a amar com todas as forças: «Saber que me amas tanto, meu Deus, e não enlouqueci?!» (Caminho, n. 425).
O sofrimento cristão
Há dois olhos capazes de ver isso, e de abrir as portas do coração: o olho da fé (que enxerga Cristo), e o olho do amor (que a fé faz acordar).
Penso que nos faria muito bem conhecer e meditar mais na alegria que vivem os cristãos que têm esse duplo olhar. Diante do sofrimento, não os vemos revoltados, raivosos, desanimados; nem apenas estoicos e resignados. Nós os vemos serenos e alegres: sofrem com paz, sem dramatismo; não se fecham, mas aumentam a sua compreensão e ternura para com os outros; e crescem muito por dentro.
Em 26 de março de 1996, um comando terrorista islâmico invadiu o mosteiro trapista de Nossa Senhora do Atlas, na Argélia, e levou presos o abade e mais seis monges. Em 21 de maio foram decapitados.
Poucos anos antes, o abade, padre Christian de Chergé, havia escrito um testamento espiritual, de que reproduzo agora uns trechos: «Se algum dia me acontecer ser vítima do terrorismo, eu quereria que a minha comunidade, a minha Igreja, a minha família, se lembrassem de que a minha vida estava entregue a Deus e a este país. Peço-lhes que rezem por mim.
»Como posso ser digno dessa oferenda? Eu desejaria, ao chegar esse momento da morte, ter um instante de lucidez tal, que me permitisse pedir o perdão de Deus e o dos meus irmãos os homens, e perdoar eu, ao mesmo tempo, de todo o coração, aos que me tiverem ferido.
»Se Deus o permitir, espero poder mergulhar o meu olhar no olhar do Pai, e contemplar assim, juntamente com Ele, os seus filhos do Islã tal como Ele os vê; que os possa ver iluminados pela glória de Cristo, fruto da sua Paixão, inundados pelo dom do Espírito… Por essa minha vida perdida, totalmente minha e totalmente deles, dou graças a Deus”[1].
Sofrer e amar
Quando têm fé, os cristãos sabem que são amados , filhos de Deus muito amados (Ef 5,1). Com os olhos postos em Cristo na Cruz, que se dá inteiramente a nós, entendem que Deus não é um Deus longínquo, que contempla fria ou indiferentemente as dores dos homens. Não, o nosso Deus é Cristo, é Jesus que compartilhou conosco todas as nossas dores, que quis conhecê-las todas, quis prová-las todas. Basta-me, para ter alegria, a certeza de que Ele sabe, Ele me entende, Ele me ama, Ele me acompanha com carinho. No sofrimento, Ele está mais do que nunca perto de mim. No sofrimento, eu posso estar mais do que nunca unido a Ele.
Em setembro de 2002, faleceu em Roma o cardeal vietnamita François Xavier Nguyên Van Thuân. Preso durante treze anos pelos comunistas, despojado de tudo, reduzido humanamente à miséria, dizia a si mesmo: «François, tu és ainda muito rico. Tens o amor de Cristo no teu coração»[2].
Em 2007, na encíclica sobre a esperança, Bento XVI falava dele: «Sobre os seus treze anos de prisão, nove dos quais em isolamento, o inesquecível cardeal Nguyên Van Thuân deixou-nos um livro precioso: O caminho da esperança. Durante treze anos de prisão, numa situação de desespero aparentemente total, a escuta de Deus, o poder falar-lhe, tornou-se para ele uma força crescente de esperança que, depois da sua libertação, lhe permitiu ser para os homens de todo o mundo uma testemunha da esperança, daquela grande esperança que não declina, mesmo nas noites de solidão» (Enc. Spe salvi, n. 32).
O sofrimento que purifica
O Amor de Deus, o Espírito Santo, foi simbolizado em Pentecostes pelo fogo que ilumina, acende e purifica. Por isso, os discípulos de Jesus, enlevados pelo mistério da Cruz, podiam dizer, como São Pedro, que os sofrimentos são a prova a que é submetida a vossa fé, muito mais preciosa que o ouro perecível, o qual se prova pelo fogo (1 Pd 1, 7). A fé é purificada pela dor, como o ouro que sai purificado do cadinho.
Veja também a alegria de São Tiago: Meus irmãos, considerai como suprema alegria as provações de toda ordem que vos assediam; e explica a seguir que dessas provações o cristão sai amadurecido, aperfeiçoado (cf. Tg 1, 2-4).
Três meses antes de falecer, São Josemaria fazia oração diante do sacrário, lançando um olhar retrospectivo à sua vida, e dizia: «Um olhar para trás… Um panorama imenso: tantas dores, tantas alegrias. E agora, tudo alegrias, tudo alegrias. Porque temos a experiência de que a dor é o martelar do Artista, que quer fazer de cada um, dessa massa informe que nós somos, um crucifixo, o outro Cristo que temos de ser»[3].
O sofrimento que alarga o coração
Voltemos ao cardeal Van Thuân, uma alma a quem o sofrimento injusto não encolheu, mas dilatou: «Para fazer resplandecer o amor que vem de Deus – afirmava –devemos amar a todos, sem excluir ninguém». Fiel a essa convicção, deu-se de tal modo a ajudar, ensinar e animar seus carcereiros, que um dos guardas lhe perguntou:
– O senhor nos ama verdadeiramente?
– Sim, eu os amo sinceramente.
– Mas nós o tivemos preso durante tantos anos, sem julgá-lo, sem condená-lo, e o senhor nos ama? É impossível, isso não é verdade!
– Estive muitos anos com vocês. Você viu que isso é verdade.
– Quando for libertado, não vai mandar os seus fiéis incendiar as nossas casas e matar as nossas famílias?
– Não. Mesmo que você queira matar-me, eu o amo.
– Mas, por quê?
– Porque Jesus me ensinou a amar a todos, mesmo aos inimigos. Se eu não o fizer, não sou digno de ser chamado cristão.
– É muito bonito, mas difícil de compreender… [4].
Passemos agora a uma menina. Montserrat Grases, ainda estudante, descobriu a sua vocação ao Opus Dei, e se entregou a Deus com alegria. Pouco depois, foi-lhe diagnosticado um sarcoma incurável numa perna, e veio a falecer após um longo itinerário de meses de sofrimento aceito com um sorriso.
Um seu irmão, que veio depois a se ordenar sacerdote, deu o seguinte testemunho:
«A sua Cruz foi muito dolorosa. Às vezes comentam-me, quando a recordam tão alegre e tão feliz, que ela sentia até gosto no meio da dor… Não, isso não é verdade. Falar assim poderia soar a masoquismo, porque aquilo não era uma dor convertida em gosto; era uma dor convertida em amor, e em luta para poder continuar a ser fiel a si mesma, a nós e a Deus, mas continuava a ser uma dor que a dilacerava, que a desfazia.
»Sofreu – eu o vi – tremendamente: mas era uma luta enamorada, no meio da dor, para encontrar Cristo Crucificado. Em meio a essa dor, junto de Cristo, nunca esteve só. Se Deus está ao meu lado – pensou – e me pede isto, será porque é possível; e se Ele o quer, Ele me ajudará… Montse, graças à dor, deu-nos o melhor de si mesma»[5].
Quero terminar este capítulo pedindo a Deus que nos ajude a realizar na nossa vida essa maravilha: manter a alegria no meio da dor, para podermos dar aos outros o melhor de nós mesmos.
E que, para conseguir isso, nos faça compreender, num mundo que foge com horror da Cruz, o que diz a Imitação de Cristo: «Somente os servidores da Cruz encontram o caminho da felicidade e da verdadeira luz» (Liv. 3, cap. 56).


[1] Cf. Otimsimo cristão, hoje, Quadrante 2008, pp. 41-43
[2] F.X. Van Thuân, Cinco pães e dois peixes, ed. Santuário, p. 54
[3] Salvador Bernal, Perfil do Fundador do Opus Dei, Quadrante 1978, p. 416
[4] Cinco pães e dois peixes cit., pp. 54-55
[5] J. M. Cejas, Montse Grases. La alegria de la entrega, Rialp 1993
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