O SILÊNCIO DE MARIA
Quando falamos da disciplina do silêncio automaticamente somos confrontados com o grande desafio que é encarar nosso cotidiano extremamente barulhento e de ritmo cada vez mais frenético. Surgem-nos perguntas tais como: “Como encontrar tempo para praticar o silêncio?”; “Não seria o silêncio uma prática exclusivamente monástica, ou seja, para pessoas com um chamado específico para viverem em clausura?”; “Estar em silêncio só é possível num ambiente com total ausência de ruídos e distrações?” e etc.
Dúvidas assim que tendem a nos intimidar e às vezes até desanimar, surgem do fato de que encaramos o silêncio apenas na sua dimensão exterior. De modo que praticar o silêncio só é visto como a separação de tempo e lugar em que paramos, nos acalmamos e adentramos num estado meditativo de quietude e interiorização. Não restam dúvidas de que o silêncio tem este lado prático e devocional. No entanto, o que poderíamos dizer daqueles que não têm muito tempo ou não dispõem de oportunidades frequentes para experimentarem períodos (horas, dias, semanas, meses) de prática silenciosa, em solitude e tendo uma Bíblia aberta diante de si?
Apesar de acreditar que devemos lutar firmemente para abrirmos brechas em nossas agendas diárias para encontrarmo-nos com o Senhor em solitude, silêncio, meditação, oração e contemplação (Lectio Divina), jamais devemos nos esquecer de que o silêncio possui outra “face da moeda” que muitos de nós amantes da espiritualidade e mística cristãs acabamos por negligenciar, seja por desconhecimento ou esquecimento da mesma.
A tradição monástica, por mais surpreendente que possa parecer, ajuda-nos nesse sentido quando fala daquilo que poderíamos chamar de vida silenciosa, onde o silêncio, mais do que um momento de se colocar num lugar desprovido de barulhos, é considerado como uma atitude interior de recolhimento constante. Um voltar-se contínuo para o nosso centro divino, nosso “eu” interior, o santuário interno de nossa alma, em outras palavras, uma atitude de contínua atenção à Presença do Deus que nos habita através do Seu Espírito e que sempre está falando com cada um de nós. Os monges em seus escritos sempre tocam no assunto de se permanecer numa “cela” interior em meditação e oração incessantes mesmo durante as atividades do dia-a-dia (“Ora et Labora”).
Acerca dessa atitude de recolhimento interior silencioso, Anselm Grun escreve: “O silêncio é a atitude interior em que eu me abro para esta realidade do Deus que me envolve. Portanto ela é mais do que o não-falar” (As Exigências do Silêncio, págs.69,70). Por esse prisma o silêncio não é visto como uma realidade em conflito com as atividades do cotidiano, mas, como um espaço mais profundo no qual elas acontecem e do qual emergem e lhes empresta significado espiritual. Aqui silêncio é estar em atitude interior de recolhimento e atenção à presença de Deus que nos envolve por todos os lados enquanto cozinhamos, varremos o chão, pegamos o ônibus para o trabalho, sentamo-nos em frente ao computador no nosso escritório e etc. Silêncio é estar em perpétua atitude de escuta para Deus.
Maria, mãe de nosso Senhor Jesus Cristo, nos é apresentada nas páginas dos evangelhos como mulher de vida silenciosa, em constante atitude meditativa de recolhimento interior em meio aos acontecimentos do cotidiano (cf. Lc 2:19). Maria é o arquétipo da mulher silenciosa, ativa-contemplativa. E temos muito que aprender ao observar seu exemplo como alguém cuja vida de silêncio interior lhe permitiu acolher o mistério do Verbo de Deus segundo nos revela o evangelho.
O silêncio de Maria lhe permitiu acolher o mistério da encarnação de Cristo . No Evangelho segundo S. Lucas no capítulo 2 verso 19 lemos acerca da atitude de Maria – “Maria, porém, guardava todas essas coisas e sobre elas refletia em seu coração”. Que coisas eram essas? O contexto imediato dos versos anteriores nos revelam (cf. vs. 16-18). Maria em atitude de meditação acolheu a revelação trazida pelos pastores acerca da criança que ela acabara de dar à luz. O glorioso mistério de que o infante envolto em panos comuns, nascido pobre, deitado numa manjedoura era o próprio Senhor e Cristo encarnado para a salvação dos pecadores (Lc 2:11). O Filho de Deus vindo em carne era ele mesmo o Evangelho, as boas-novas de grande alegria para todo o povo, inclusive ela, Maria. No silêncio de seu coração Maria pode contemplar a glória de Deus cumprindo as profecias da Antiga aliança, trazendo ao mundo o Messias prometido como Luz para dissipar as trevas do pecado, trazendo paz aos homens (Lc 2:14).
O silêncio de Maria lhe permitiu acolher o mistério da Identidade de Cristo. Num outro texto Lucas menciona novamente a atitude de Maria frente à revelação do mistério divino – “Sua mãe, porém, guardava todas essas coisas em seu coração” (cf. Lc 2:51b). Que mistério foi esse que ela guardou em recolhimento interior e oração? O contexto dos versos anteriores (vs. 41-50) nos mostra que foi a revelação da identidade de Jesus com o Pai Celeste exposta nas suas próprias palavras – “Por que vocês estavam me procurando? Não sabiam que eu devia estar na casa de meu Pai?”(v.49). Mesmo não tendo compreendido naquele momento todas as implicações do que fora dito por seu jovem filho (v.50), Maria acolheu aquelas palavras “Jesus se diz filho do próprio Deus”. O acolhimento do mistério contido nas palavras de Jesus possibilitou no futuro Maria compreender que Jesus e o Pai eram um (cf. Jo 10:30; 14:9,10) e que como seu Senhor e Mestre ele não lhe devia mais obediência (Jo 2:3,4) e sim que deveria ser obedecido em tudo (Jo 2:5). No silencio interior do coração Maria intuiu que aquele judeu pré-adolescente não era só o filho do carpinteiro José, seu marido, mas antes de tudo o Unigênito do Pai.
E o silêncio de Maria lhe permitiu acolher o mistério da paixão de Cristo. Apesar de não encontramos a mesma fórmula dos pontos anteriores que nos falam de Maria guardando palavras e acontecimentos no coração em atitude de meditação, não podemos desprezar a presença dessa mesma atitude perante a crucificação – “Perto da cruz de Jesus estavam sua mãe, a irmã dela, Maria mulher de Clopas, e Maria Madalena” (Jo 19:25). Maria diante do corpo pregado na cruz não diz nada. Chora apenas. E contempla a Graça e o amor redentor de Deus sendo levado até as últimas consequências por cada um de nós, inclusive por ela mesma. No silêncio de seu coração contemplativo ela descobre aos pés da cruz que naquela paixão divina havia substituição (cf. Mt 27:46), havia perdão (cf. Lc 23:34) e havia redenção (cf. Jo 19:30).
O silêncio de Maria não era um silêncio alienado, desatento e inútil. Pelo contrário, era atento e profícuo. Não vemos Maria investindo grandes somas de tempo para a realização de retiros silenciosos e meditativos. Pelo menos as Escrituras não nos relatam nada a esse respeito. Ao passo que nos mostra uma mulher comum que vivia as nuances da vida cotidiana numa dimensão espiritual. E isso lhe era possível porque ela guardava todas as coisas meditando-as no seu coração.
Essa atitude interior silenciosa lhe permitiu acolher os grandes mistérios do advento, da encarnação e da paixão, bem como a apreensão do Sagrado que lhe era oferecido por detrás dos eventos ordinários de um dia (inclusive no bronquear com o filho de 12 anos que desaparece do nada!).
Que possamos seguir seu exemplo. Que nos esforcemos para cultivar momentos silenciosos devocionais para meditarmos e orarmos. Que o silêncio desses momentos nos acompanhe no decorrer do dia à medida que em meio às múltiplas atividades de nosso viver nos voltemos para nosso interior silencioso onde o Pai, o Filho e o Espírito Santo, o Deus Eterno e Triúno, nos aguarda para que continuemos a desfrutar de íntima comunhão.
Se fizermos assim como Maria cada simples atividade será meditação; cada simples acontecimento oração; cada simples pensamento contemplação.
Que Deus nos abençoe!
Vosso servo e irmão menor,
Felipe Maia, OESI/OFSE
Paz e bem.
https://vidacontemplativa.wordpress.com/2016/09/24/o-silencio-de-maria/#comment-754
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