A PRÁTICA DA MORTIFICAÇÃO


Por Adolph Tanquerey
A mortificação deve abraçar o homem inteiro, corpo e alma; porque o homem inteiro, se não está bem disciplinado, é que é uma ocasião de pecado. É certo que, falando com rigor, só a vontade é que peca; mas a vontade tem por cúmplices e instrumentos o corpo com os seus sentidos exteriores e a alma com todas as suas faculdades. É, por conseguinte, o homem todo que deve ser disciplinado ou mortificado.
A mortificação combate o prazer. É certo que o prazer em si não é um mal; é até um bem, quando se subordina ao fim para que Deus o instituiu. Ora, Deus quis vincular certo prazer ao desempenho do dever, a fim de facilitar o seu cumprimento. Assim, por exemplo, encontramos certo gosto no comer e beber, no trabalho, e noutros deveres deste gênero. Donde se deduz que, no plano divino, o prazer não é um fim senão um meio. Gostar o prazer, com o fim de melhor cumprir o dever, não é pois, proibido; é a ordem estabelecida por Deus. Mas querer o prazer por si mesmo, como fim, sem relação alguma com o dever, é pelo menos arriscado, pois se corre perigo de escorregar dos prazeres lícitos aos ilícitos. Gozar o prazer, excluindo o dever, é pecado mais ou menos grave, porque é a violação da ordem estabelecida por Deus. A mortificação consistirá, pois, em nos privarmos dos prazeres maus, contrários à ordem providencial, ou à lei de Deus ou da Igreja; em renunciarmos até aos prazeres perigosos, para não nos expormos ao pecado; e ainda em nos abstermos de alguns prazeres lícitos, para melhor assegurarmos o império da vontade sobre a sensibilidade.
Neste mesmo intuito, não somente nos privaremos de alguns prazeres, mas até nos infligiremos algumas mortificações positivas; porque é um fato da experiência que não há nada mais eficaz para amortecer a inclinação ao prazer do que impor-se algum trabalho ou sofrimento de super-rogação.
Mas a mortificação deve-se praticar com prudência ou discrição: deve ser proporcionada às forças físicas e morais de cada um e ao cumprimento dos deveres de estado.
É mister poupar as forças físicas, porquanto, segundo São Francisco de Sales, “estamos expostos a grandes tentações em dois estados, a saber, quando o corpo está demasiadamente nutrido, ou excessivamente abatido”; é que, efetivamente, neste último caso facilmente se cai em neurastenia, que obriga depois a cuidados perigosos.
É preciso poupar as forças morais, isto é, não se impor ao princípio excessivas privações que não se poderão continuar por muito tempo e que, no momento em que se deixam, podem conduzir ao relaxamento.
Importa sobretudo que estejam em harmonia com os deveres de estado, pois que estes, por obrigatórios, devem prevalecer às obras de super-rogações. Assim, por exemplo, seria mau para uma mãe de família praticar austeridade que a impedissem de cumprir os seus deveres para com o marido e os filhos.
Há uma certa hierarquia nas mortificações: as interiores valem, evidentemente, mais que as exteriores, por combaterem mais diretamente a raiz do mal. Mas importa não esquecer que estas facilitam muito a prática daquelas; quem quisesse disciplinar a imaginação, sem mortificar os olhos, não chegaria a grandes resultados, precisamente porque estes fornecem àquela as imagens sensíveis que lhe dão pasto. Foi erro dos modernizantes mofar das austeridades dos séculos cristão. De fato, os Santos de todas as épocas, tanto os que foram beatificados ou canonizados nestes últimos tempos como os outros, castigaram asperamente o próprio corpo e os sentido exteriores, bem persuadidos que, no estado de natureza decaída, é o homem todo que deve ser mortificado, para pertencer totalmente a Deus.
Vamos, pois, percorrer sucessivamente todos os gêneros de mortificação, começando pelos exteriores, para chegar aos interiores: é esta a ordem lógica; na prática, porém, é mister saber combinar e dosar uns e outros.
Retirado da obra “A Vida Espiritual – explicada e comentada”
https://capelasantoagostinho.com/2018/02/15/a-pratica-da-mortificacao/#more-613

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